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quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

A Ilha da Vergonha (001)

E... porque não iniciar um livro por aqui? Ou talvez dois...

Mais uma vez sem compromissos de assiduidade, (ou de revisão nos textos), vou semanalmente começar a publicar no blog duas histórias distintas. Uma delas, apontada para um público mais jovem, e a outra, um "thriller" cuja história principia no rescaldo do 25 de Abril e, talvez um dia a consiga terminar...

Vamos lá então...


            26 De Abril de 1974, um dia depois da revolução. 

            Passava um minuto das nove e quarenta e cinco da manhã quando a policia política, PIDE/DGS, se rende incondicionalmente e a sua sede na rua António Maria Cardoso é ocupada por forças do exército e da marinha.
            Apenas duas horas depois, inicia-se a libertação dos presos políticos em Caxias e Peniche e, antes do final da tarde, militares munidos de G3’s vasculhavam as duas prisões certificando-se que ninguém ficava para trás.
            A notícia da queda do governo enchia de esperança aqueles que, há anos não tomavam o gosto da liberdade e, uma após outra, as celas iam sendo abertas deixando entrar um ligeiro odor a cravos vermelhos. Talvez fosse apenas por sugestão mas, todos os que tinham passado os últimos tempos naquelas fortificações, podiam jurar que o perfume de cravos, o símbolo da revolução, pairava no ar como o fresco aroma de um jardim.
            Às dez e cinquenta e cinco da noite apenas dois homens ainda circulavam teimosamente nos escuros corredores da fortaleza de Peniche. Apenas vinte e quatro horas antes, os Emissores Associados de Lisboa transmitiam a canção “E depois do Adeus” na voz de Paulo Carvalho, marcando o início das operações militares contra o regime. Uma hora e meia depois, a Rádio Renascença emite para o ar a musica “Grândola Vila Morena” indicando que as operações militares estavam em marcha e eram irreversíveis.

            – Só faltam mais estas três e, depois é a nossa vez de ir comemorar. – Informa o soldado Fernandes, enquanto com a ponta de baioneta afasta os lençóis de cima do beliche do pequeno e mal cheiroso compartimento. O companheiro, cansado das mais de nove horas de buscas ininterruptas, limitou-se a um encolher de ombros olhando em seguida, num gesto rotineiro, para uma e outra ponta do corredor, descansando depois a sua G3 no chão durante alguns segundos. – Vá lá… anima-te e baixa a guarda. Se não tivemos problemas até agora, também já não vamos ter.
            – Vá! Despacha-te com isso. – Ordenou o soldado Pais. Competia-lhe a ele fazer a vigia e, o tom autoritário saiu-lhe apenas devido ao cansaço com que se encontrava e ao desespero de há mais de uma semana não saber o que era uma cama macia. Afinal, tinham os dois a mesma patente e tinham entrado para o Regimento de Infantaria 5 das Caldas da Rainha na mesma altura, pelo que não tinha o direito de usar um tom autoritário para com o companheiro.
            – Esta também está limpa. – Bradou o soldado Fernandes, completando a inspecção da cela com algumas coronhadas na parede. O som baço das pancadas e algumas lascas de cal amarelada que se soltaram com o embate, convenceram-no que não havia nenhuma cavidade oculta. – Passemos à próxima.
            Mais uma vez, a mesma rotina.
            A porta da cela era aberta e um soldado entrava enquanto o outro ficava de vigia.
            A baioneta do soldado Pais começou por afastar os lençóis dos dois beliches picando o fino colchão com a ponta. Olhou para o pequeno cubículo e em seguida para o companheiro que montava uma desleixada guarda, com a arma encostada à parede enquanto retirava de um dos muitos bolsos das calças um maço de tabaco meio amarrotado com desenho de um barco branco em frente de uma ponte dourada.
            – Tenho de deixar esta merda! – Afirmou, ao mesmo tempo que acendia um cigarro e voltava a guardar o maço de Porto no bolso. – A três escudos e cinquenta o pacote, só os ricos é que podem fumar.
            – Não sei porque estamos com este trabalho todo. – Retorquiu Pais, sem ligar ao que o colega dizia. – É impossível um homem esconder-se nestas celas minúsculas e as paredes são de pedra maciça. Só de pensar que já há nove horas que ando nisto…
            – Então pá… acalma-te! Estamos quase a acabar. Verifica o cesto da roupa e passamos a outra.
            – O cesto da roupa? O que pensas encontrar lá? A cabeça do Salazar? – Sem esperar resposta e, como que para libertar um pouco da tensão acumulada nas últimas horas, faz uma investida contra o cesto de verga que se encontrava a um canto da cela e espeta-lhe a baioneta com todas as forças.
            Um grito abafado preencheu o silêncio em que a prisão se encontrava ecoando na escuridão até esmorecer num suspiro. O cesto tombou quando o soldado retirou a afiada lâmina pondo a descoberto um monte de roupa enxovalhada. Uma criança rola para fora do seu esconderijo ficando depois encolhida no chão segurando a perna ferida com uma expressão de dor e sofrimento estampada no rosto mas, sem pronunciar um único som. Os dois soldados demoraram alguns segundos a reagir àquela inesperada situação. Muito improvavelmente, podiam esperar encontrar ainda alguém escondido na fortaleza mas… uma criança; um miúdo que parecia não ter mais de oito anos? Era a última coisa com que esperavam deparar-se naquele sítio.

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